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Cabe controle de constitucionalidade do veto presidencial? por Roberta Simões Nascimento

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Não há diferença relevante entre as razões do veto e as de emenda parlamentar, mas a forma pode ser controlada…

Com a notícia de que o PT ingressou com a ADPF n. 714 para impugnar os vetos presidenciais lançados ao Projeto de Lei n. 1.562, de 2020 – cuja parte sancionada resultou na Lei n. 14.019/2020, que alterou a Lei n. 13.929/2020, que dispõe sobre as medidas para enfrentamento da pandemia – prontamente pergunta-se: cabe controle de constitucionalidade do veto presidencial?

Da primeira vez em que se discutiu o tema no STF, na questão de ordem na ADPF n. 1, o então ministro Néri da Silveira reputou a impossibilidade do controle judicial, pois o veto atacado (então pendente de deliberação junto ao Congresso Nacional), ao constituir etapa do processo legislativo, estaria reservado à esfera interna corporis. Assim, não se enquadraria no conceito de “ato do poder público” para fins do art. 1º da Lei n. 9.882/1999. Acrescentou, ainda, que o projeto de lei, na parte vetada, não é lei, nem ato normativo suscetível de controle concentrado, pelo que não conheceu da referida ação.

De fato, o veto tem natureza constitutiva, isto é, integra o processo de formação das leis. Sem a aquiescência do Chefe do Poder Executivo, impede-se (ainda que momentaneamente) que o projeto de lei aprovado pelo Congresso Nacional, no todo ou em parte, seja convertido em lei (art. 66, § 1º, da CF). Tal deliberação executiva gera um incidente consistente na “devolução” da matéria para nova apreciação por parte dos congressistas (art. 66, § 4º, da CF), que têm a opção de manter ou não o veto presidencial.

Na segunda vez, o tema foi levado ao STF na ADPF n. 45, na qual o autor alegava que o veto esvaziaria, em parte, a obrigatoriedade de aplicação de recursos mínimos destinados a ações e serviços públicos de saúde, instituída na CF. A ação acabou sendo julgada prejudicada, por perda superveniente do objeto, pois o então Presidente enviou projeto de lei ao Congresso Nacional, que, devidamente aprovado, trouxe norma com idêntico teor ao do dispositivo vetado.

Não obstante o reconhecimento da prejudicialidade nesse caso, o ministro Celso de Mello afirmou na decisão“não posso deixar de reconhecer que a ação constitucional em referência, considerado o contexto em exame, qualifica-se como instrumento idôneo e apto a viabilizar a concretização de políticas públicas, quando, previstas no texto da Carta Política, tal como sucede no caso (EC 29/2000), venham a ser descumpridas, total ou parcialmente, pelas instâncias governamentais destinatárias do comando inscrito na própria Constituição da República”. Assim, a partir desse obiter dictum, pareceria possível depreender o cabimento do controle de constitucionalidade do veto presidencial.

No entanto, como se acaba de ver, o veto sempre pode ser “derrubado” pelo voto da maioria absoluta dos deputados e senadores (art. 66, § 4º, da CF). Como sabido, aposto o veto, o Presidente da República precisa comunicar ao Presidente do Senado Federal, no prazo de 48 horas, os seus motivos. A partir do recebimento dessas razões, o Congresso Nacional tem 30 dias para apreciar os vetos. Assim, enquanto pendente tal apreciação, reputa-se não atendido o requisito da subsidiariedade da ADPF previsto no art. 4º, § 1º, da Lei n. 9.882/1999, pois existiria “outro meio eficaz de sanar a lesividade” ao preceito fundamental (no caso, a rejeição do veto pelo próprio Legislativo).

Além disso, pretender controlar as motivações do veto presidencial recém-lançado equivaleria à tentativa de revisar, precocemente, a própria decisão legislativa ainda em curso de formação. Não há diferença substancial entre perscrutar as razões do veto presidencial e as de uma emenda parlamentar. Ocorre que, conforme o MS n. 32.033, o sistema brasileiro não admite o controle jurisdicional da constitucionalidade material dos projetos de lei, isto é, enquanto as normas infraconstitucionais estiverem em elaboração (a exceção se limita à legitimidade do parlamentar, via mandado de segurança, para coibir a prática de atos procedimentais incompatíveis com o devido processo legislativo constitucional). Como o veto implica mera “suspensão” do projeto de lei (ou parte dele) até a confirmação do Legislativo, somente após essa decisão do Parlamento terá havido a conclusão da fase constitutiva da lei.

Assim, diante do exercício regular do poder de veto, só o Legislativo poderia entrar no mérito desse ato, que nesse ponto seria insindicável pelo Judiciário. Inclusive, por isso, entre outras razões, não se aceitou o MS n. 33.694 que pretendia submeter ao controle concentrado o mérito do veto.

Agora, se o veto for mantido pelo Congresso Nacional, pergunta-se: não seria mais técnico impugnar a própria lei via ADI (ou ADO), em lugar do veto em si? Em outras palavras, por que atacar o veto (enquanto ato do processo legislativo), quando a suposta inconstitucionalidade já residiria no texto legal vigente (sem o trecho suprimido pelo veto, enquanto norma resultante do processo legislativo)? Nesse caso, entende-se que mais adequado à luz do interesse de agir (art. 17 do CPC) seria o ajuizamento das demais ações do controle concentrado, questionando os dispositivos normativos da lei em vigor, em lugar de uma ADPF contra o veto presidencial que não tem cunho normativo.

No entanto, o fato é que a APDF n. 714 diverge dessas situações, na medida em que se volta contra a inconstitucionalidade da aposição do próprio veto (ato de vetar), que teria sido intempestivo. Conforme a petição inicial, o PL n. 1.562, de 2020, foi enviado à sanção pela Mensagem n. 7/2020, no dia 12/06/2020, de modo que o prazo de 15 dias úteis, terminaria no dia 03/07/2020, dia em que efetivamente o Presidente lançou mão do veto em 17 dispositivos, igualmente publicando a Lei n. 14.019/2020. Nada obstante, no dia 06/07/2020, houve nova publicação que ampliou o veto a mais dois dispositivos que não constaram da primeira publicação: o art. 3º-B, caput e § 5º, e o art. 3º-F.

Por isso, segundo o PT, o Presidente da República teria abusado de seu poder de veto por três razões: 1) a inexistência de incorreção que justificasse a republicação, no dia 06/07/2020, pois o veto já tinha sido publicado no dia 03/07/2020; 2) a intempestividade do veto suplementar acrescido na segunda publicação, dado que o prazo de que dispunha se encerrou no dia 03/07/2020; e 3) a preclusão consumativa, que impediria a aposição de novos vetos após a promulgação e publicação da lei, em violação ao preceito fundamental do ato jurídico perfeito (art. 5º, inciso XXXVI, da CF).

Como se vê, se o Congresso Nacional eventualmente mantiver os referidos vetos adicionais, a ADPF n. 714 claramente terá atendido os requisitos legais e constitucionais. Isso porque cabe ADPF contra lei ou “ato do Poder Público” (seja federal, estadual, distrital ou municipal), normativo ou não, sendo, também, cabível contra medida judicial “quando for relevante o fundamento da controvérsia sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, incluídos os anteriores à Constituição” (art. 1º, parágrafo único, inciso I, da Lei n. 9.882). E, na manutenção do veto pelos congressistas, também restaria atendida a subsidiariedade do art. 4º, § 1º, da Lei n. 9.882/1999.

Nesses termos, reputa-se possível o controle de constitucionalidade do veto em seus aspectos formais, sobretudo a tempestividade e abrangência (garantindo, por exemplo, que o veto alcançará somente texto integral de artigo, de parágrafo, de inciso ou de alínea, conforme o art. 66, § 2º, da CF).

Na ADI n. 1.254, o STF afirmou que a elaboração legislativa, na qualidade de processo, também está sujeita à regra da preclusão, a qual impediria a retratação do veto. Se o Presidente se arrepende do veto lançado, pode articular que o Legislativo o rejeite. Mas não há o caminho inverso: não é possível adicionar um veto a destempo. O mesmo raciocínio também se aplicaria à sanção presidencial: uma vez exercida, não caberia retratação com veto posterior. Por essa lógica, restaria impedida a aposição de vetos sucessivos após a publicação da lei, em qualquer caso, inclusive nas situações em que ainda houvesse saldo no prazo do art. 66, § 1º, da CF. Assim, uma vez exercido o veto em relação a uma proposição, nesse ato se exauriria todo o poder.

Voltando à petição inicial da ADPF n. 714, o autor avança sustentando a inconstitucionalidade dos vetos por violação aos preceitos fundamentais do direito à vida (art. 5º, caput, da CF) e do direito social à saúde (art. 6º, caput, e art. 196 da CF). Registra que o Poder Executivo viria obstando a adoção de medidas de contenção da pandemia e que os vetos impugnados impediriam o avanço legislativo rumo à promoção de condutas cientificamente fundamentadas que visariam à contenção da disseminação do vírus e a proteção coletiva à incolumidade física dos cidadãos.

Nesse ponto, observa-se tentativa de controlar o mérito dos vetos. No entanto, como já dito, por razões de ordem técnica e constitucional, é duvidoso que seja cabível tal controle, em razão da peculiar natureza jurídico-política do veto presidencial (equiparável a uma emenda parlamentar), além de ser discutível o cabimento de ADPF, ante a possibilidade de manejo de ADI (ou ADO) em face do texto da lei sancionada, conforme o caso.

Seja como for, a considerar pelo teor da republicação ocorrida no dia 06/07/2020 já possível antecipar que a defesa presidencial argumentará ter havido mera “incorreção” na publicação inicial (de 03/07/2020), e não vetos adicionais inseridos no dia 06/07/2020 como argui o autor. E mais: ainda que eventualmente venha a ser solicitada, a comprovação desse “erro material” seria difícil, sobretudo pela prática usada nos despachos presidenciais (apresentação de diversas opções de minutas para assinatura). Em caso parecido (na ADI n. 3146), o STF já entendeu não demonstrado o abuso nas circunstâncias.

No pior cenário, todo o episódio serviu para registrar o cabimento do controle de constitucionalidade do veto presidencial em seus aspectos formais, mas não quanto ao mérito em si (não sendo aplicável a teoria dos motivos determinantes para justificar o desacerto de seu conteúdo). Além disso, sempre após a deliberação pelo Legislativo, nunca antes, sob pena de, na linha do voto do min. Teori Zavascki no MS n. 32.033“prematura intervenção do Judiciário em domínio jurídico e político de formação dos atos normativos em curso no Parlamento, além de universalizar um sistema de controle preventivo não admitido pela Constituição, subtrairia dos outros Poderes da República, sem justificação plausível, a prerrogativa constitucional que detém de debater e aperfeiçoar os projetos, inclusive para sanar seus eventuais vícios de inconstitucionalidade”.

ROBERTA SIMÕES NASCIMENTO – Advogada do Senado Federal desde 2009. Doutora em Direito pela Universidade de Alicante, Espanha. Doutora e mestre em Direito pela Universidade de Brasília. Professora voluntária na Universidade de Brasília.

 

Publicado originalmente no site jurídico JOTA

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