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CENTRO DE ESTUDOS CONSTITUCIONAIS E DE GESTÃO PÚBLICA

CECGP articula suas tarefas de pesquisa em torno de Programas de Pesquisa em que se integram pesquisadores, pós-doutores provenientes de diferentes países.

Normas regulatórias e segurança jurídica, por Alexandre Fernandes

 

Um dilema que precisa ser resolvido

Um dos grandes desafios do Poder Judiciário é fazer valer princípios que devem nortear os julgamentos e todos aqueles que trabalham com a Justiça em nosso País. Princípios estes constitucionais e infraconstitucionais.

Sem dúvida, diante de tantas críticas e holofotes que vêm atingindo este Poder nos últimos anos, os “testes” sobre a higidez das posições dos julgadores se acentuam a cada dia, em cada caso levado para discussão, que pode ser criticado negativamente ou aplaudido pela opinião pública. Apenas para ilustrar o tamanho desse foco que está voltado para o Judiciário1, é mais fácil hoje você saber os nomes dos 11 Ministros que compõem o STF do que dos jogadores da seleção brasileira de futebol masculino – que por um lado é muito bom, pois mostra uma evolução da nossa sociedade.

Destaco para essa opinião o princípio da segurança jurídica, que está elencado no inciso XXXVI, art. 5º da Carta Magna, com o viés voltado para a validade das normas das Agências Reguladoras do Governo Federal, os contratos firmados pelos consumidores com as empresas reguladas e os diversos entendimentos do Poder Judiciário.

Uma recente publicação em jornais de grande circulação que tem a ver com o que estou trazendo para debate decorre de um menor, com pouco mais de 2 anos de idade e portador de uma atrofia muscular espinhal (AME), ter sido impedido de viajar em voo comercial por estar, em tese, fora das normas de segurança que regem a Aviação Civil brasileira, regulada pela ANAC.

Apenas para lembrar o casso, o menor faz tratamento de saúde em Estado diferente da sua residência e, até completar 2 anos de idade, podia, segundo as normas de segurança e da ANAC, viajar de avião no colo de um responsável. Ao completar a idade limite de colo, a companhia aérea, após analisar os laudos enviados pela família, constatou que ele não estava apto e em condições médicas para voar no colo de um responsável e nem sozinho em assento, pois não conseguiria manter-se ereto. Esse fato, segundo a companhia aérea, poderia colocar em risco o menor e os demais passageiros em voo.

Por questões de segurança e com base nas normas da Agência Reguladora, a solução buscada pela companhia aérea junto à família foi utilizar o serviço de empresa especializada aeromédico, já que, segundo consta, a companhia não tinha autorização e homologação da ANAC para transporte de passageiros em macas.

Diante da discussão, a família do menor buscou o Judiciário com a intenção de conseguir – e conseguiu – uma tutela de urgência e fazer com que obrigasse a companhia aérea proceder ao transporte do menor, contrariando, em tese, as normas de segurança e Resolução da Agência Reguladora – autarquia com legitimidade dada por lei para regular e fiscalizar.

Como esse, posso destacar diversos outros impasses entre a pretensão dos consumidores e cidadãos e as normas das Agências Reguladoras, como, por exemplo: obrigar o Estado (em sentido amplo) pagar medicamento sem registro na ANVISA para determinado paciente, contrariando as normas de segurança e prejudicando a coletividade; determinar que as operadoras/seguradoras de saúde custeiem procedimentos não constantes no Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde editado pela ANS, contrariando normas de segurança e eficácia médicas, além de priorizar grupos de consumidores em detrimento dos demais – cunho econômico que norteia o segmento; dentre outros casos envolvendo as demais Agências.

Não são os fatos que quero trazer para a discussão, mas sim, o cerne deles. Até que ponto o Poder Judiciário pode interferir em normas calcadas em técnicas que são editadas pelas Agências Reguladoras? O que precisa acontecer para que tenhamos a segurança jurídica no que tange ao cumprimento e respeito às normas editadas pelas Agências – desde que não violem princípios e leis – e aos contratos que envolvem empresas reguladas? Essa é a reflexão desse artigo.

Apenas para trazer alguns dados financeiros sobre uma dessas discussões, no ano de 2010, a União gastou R$ 2,4 milhões2 para cumprir decisões judiciais determinando o custeio de medicamentos importados sem registro na ANVISA; R$ 314 milhões no ano de 2014 entre União e o Estado de São Paulo3; R$ 545 milhões no ano de 2015 pela União4; e certamente essa curva é crescente e já passa da casa de bilhão.

Agora, especificamente, vamos analisar o aspecto da segurança jurídica das normas voltadas para o segmento da saúde suplementar, que vêm sendo muito debatidas nos Tribunais Estaduais e no STJ, inclusive com alguns assuntos através do rito dos Recursos Repetitivos5.

Sou da opinião que é responsabilidade do Judiciário analisar a contento todas as provocações trazidas pelas partes envolvendo as normas regulatórias, em especial aqui da Agência Nacional de Saúde Suplementar. E, da mesma forma, firmo meu posicionamento no sentido de que o Judiciário – com o devido respeito às opiniões contrárias – deve, também, respeitar as diretrizes trazidas pelas normas regulatórias e a vontade das partes firmadas em contrato – inclusive nos contratos de adesão, desde que não se apresente cláusula abusiva. Isso nada mais é do que cumprir o princípio do ato jurídico perfeito que é traduzido como segurança jurídica.

Vale ressaltar que as Agências Reguladoras foram constituídas com o objetivo de regular, normatizar, controlar e fiscalizar as atividades das empresas que atuam nos seus respectivos segmentos. São autarquias com profissionais habilitados (concursados e temporários) e com expertise dedicada a cada setor.

Neste sentido, vou utilizar para a reflexão desta opinião o artigo 10, § 4º da Lei Federal nº 9.656/986:

“…

  • 4oA amplitude das coberturas, inclusive de transplantes e de procedimentos de alta complexidade, será definida por normas editadas pela ANS.”

Ou seja, o Legislador deixou para o órgão regulador e técnico, a definição da amplitude mínima de cobertura que pode ser contratada e que deve fazer parte do pacote de obrigações das seguradoras e operadoras de planos de saúde, para os contratos firmados a partir da entrada em vigor da Lei Federal 9.656/987. E, obedecendo a Lei, a ANS, que foi criada através da Lei Federal nº 9.961/00, passou a editar diversas normas para atender ao dispositivo supra, ao caput do artigo 1º8 e inciso III, art. 4º9, dentre elas, a Resolução Normativa que firmou o primeiro Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde.

Hoje, o Rol da ANS está regulamentado pela Resolução Normativa nº 428, de 7 de novembro de 2017, que estabelece, como dito, a referência básica para cobertura assistencial mínima dos novos planos.

E, logo no início da norma, a Agência Reguladora esclareceu que as seguradoras e operadoras “poderão oferecer cobertura maior do que a mínima obrigatória prevista nesta – RN e em seus Anexos, por sua iniciativa ou mediante expressa previsão no instrumento contratual referente ao plano privado de assistência à saúde”.

Ora, a ANS deixou evidente que aquela cobertura trazida com a RN nº 428/17 – e suas antecessoras – é o mínimo obrigatório, facultando às empresas a oferta de coberturas além daquelas para os contratantes. Ao meu sentir, o texto é claro, até porque todas as coberturas decorrem de cálculo atuarial para o alcance da extensão da contraprestação que será contratada.

Se, de forma transparente, o Legislador concedeu às Agências Reguladoras – frise-se que são autarquias com expertise nos seus setores – o poder de promover as diretrizes de segurança, políticas, comercialização, coberturas, normatização, regulação, controle etc., e elas devem ser seguidas pelas empresas, como pode o Judiciário interferir nestas normas e nos contratos sem que haja, no mínimo, uma análise técnica cuidadosa e abrangente sobre o assunto? Digo técnica não só através de médico ou especialista de segurança – para atender os dois exemplos trazidos no texto -, mas também de profissionais da área atuarial, econômico-financeiro, logística dentre outros.

Tenho, para mim, desde que não haja nenhuma violação de direito, que o Poder Judiciário deveria fazer eco com as Resoluções das Agências Reguladoras. Mas, pelo que ainda é observado das decisões proferidas, grande parte delas ainda inclina-se no sentido de afastar estas Resoluções, buscando priorizar de forma genérica a aplicação de leis e princípios.

É verdade que pode ocorrer em determinas Resoluções – e certamente é exceção – violação constitucional ou legais. O fato não é impossível, uma vez que até algumas Legislações Federais são alvo de ADI com êxito ao final.

Porém, em se tratando de Agências Reguladoras, as Resoluções são baseadas em estudos, pareceres, opinião pública, técnica, ciências, economia, dentre outras diretrizes que solidificam e fundamentam a intenção do Regulador, e não podem ser desprezadas pela Justiça.

Às vezes, nós, que trabalhamos com a Justiça, não fazemos ideia do impacto que vem a reboque de uma provocação ao Judiciário e a sua consequente decisão. E não me refiro às decisões acertadas e baseadas na Constituição e na Legislação. Refiro-me às provocações e decisões que contrariam especialistas e as normas das Agências Reguladoras. 

Por fim, e como dito anteriormente, o que pretendo provocar é a reflexão sobre a legitimidade das Agências para editar as normas dos seus respectivos setores e a validade destas perante aos consumidores e contratos. O pacta sunt servanda ficou esquecido por muitos nos últimos anos e deve ser resgatado novamente para fazer valer o princípio da segurança jurídica. Só assim conseguiremos evoluir para um cenário jurídico mais cristalino e eficaz para todos.

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1 Provocação feita pela revista Veja em https://veja.abril.com.br/politica/quem-voce-conhece-mais-os-11-do-stf-ou-os-11-da-selecao/sendo certo que este comparativo já fora abordado outras vezes anteriores pela mídia.

2 https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/estado/2016/10/16/gasto-com-remedio-sem-aval-da-anvisa-cresce-220-vezes-em-cinco-anos.htm

3 Jornal Estadão: http://saude.estadao.com.br/noticias/geral,governos-gastam-r-314-milhoes-com-remedio-importado,1693438

4 Idem nota 2.

5 Tema 610 – Discussão sobre prazo prescricional para exercício da pretensão de revisão de cláusula contratual que prevê reajuste de plano de saúde e respectiva repetição dos valores supostamente pagos a maior.

Tema 952 – Discute-se a validade da cláusula contratual de plano de saúde que prevê o aumento da mensalidade conforme a mudança de faixa etária.

Tema 989 – Definir se o ex-empregado aposentado ou demitido sem justa causa faz jus à manutenção no plano de saúde coletivo empresarial quando, na atividade, a contribuição foi suportada apenas pela empresa empregadora.

Tema 990 – Definir se as operadoras de plano de saúde estão obrigadas ou não a fornecer medicamento importado, não registrado na ANVISA.

6 É importante destacar que há no mesmo artigo expressa exclusão para outras coberturas, como, por exemplo, fornecimento de medicamentos importados não nacionalizados (art. 10, V da Lei Federal 9.656/98).

7 Esta obrigação se aplica aos contratos firmados a partir da entrada em vigor da Lei Federal 9.656/98, conforme decisão proferida pelo STF nos autos da ADI 1.937.

8 Art. 1o É criada a Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS, autarquia sob o regime especial, vinculada ao Ministério da Saúde, com sede e foro na cidade do Rio de Janeiro – RJ, prazo de duração indeterminado e atuação em todo o território nacional, como órgão de regulação, normatização, controle e fiscalização das atividades que garantam a assistência suplementar à saúde.

9 Art. 4o Compete à ANS:

III – elaborar o rol de procedimentos e eventos em saúde, que constituirão referência básica para os fins do disposto na Lei no 9.656, de 3 de junho de 1998, e suas excepcionalidades;

ALEXANDRE BOCCALETTI FERNANDES – Advogado e Consultor com Pós-Graduações em Gestão de Negócios – Fundação Dom Cabral, Direito Civil e Constitucional – UERJ e Especialização em Direito Médico e da Saúde – UFF

 

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