CECGP

CENTRO DE ESTUDOS CONSTITUCIONAIS E DE GESTÃO PÚBLICA

CECGP articula suas tarefas de pesquisa em torno de Programas de Pesquisa em que se integram pesquisadores, pós-doutores provenientes de diferentes países.

OS DIREITOS SOCIAIS NA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA E SEU PANORAMA INTERNACIONAL – Por Sergio Tamer

SERGIO TAMER BANNER

“Mas o grande desafio para o constitucionalismo social no Brasil continua sendo o de reduzir a distância estrutural entre normatividade e efetividade.  E se é verdade que a Constituição democrática é a “união do povo com o Estado” deixemos que esse casamento seja duradouro, ainda que em meio às suas relações conflituosas, evitando, assim, tantas infidelidades constitucionais por parte dos poderes da República.”

Por Sergio Tamer

“A ameaça à democracia contemporânea já não deriva da concentração de poderes políticos numa só instância, mas sim da crescente desigualdade, condição que gera a resignação e o abandono da participação pública por parte dos cidadãos.” Robert Dahl

          Os 35 anos da Constituição brasileira, celebrados no mês de outubro de 2023, contabilizam 131 Emendas, a última delas publicada no dia 4 daquele mês, na véspera do seu aniversário. Porém, ela permanece firme no tocante às garantias que preservam a dignidade da pessoa humana, em especial os direitos sociais. Mas essas garantias só funcionam com políticas públicas eficazes e, grosso modo, elas ou são precárias ou inexistentes, como temos constatado desde o nascimento da Carta Política, em 1988.  A Constituição, vale dizer, fez a sua parte. A doutrina e a jurisprudência, também. Mas na hora de dar efetividade à norma constitucional de natureza social o Poder Executivo, nos seus três níveis, mostra-se claudicante. O que se passa com o Brasil, uma economia pujante e moderna, mas que não consegue libertar-se do atraso social?

        , de fato, uma enorme dificuldade para fazer chegar os direitos sociais ao conjunto da sociedade e este é um tema constitucional de extrema importância, vinculado que está à efetivação dessas normas fundamentais, sobretudo em um país como o nosso que guarda diferenças regionais e de desenvolvimento bastante acentuadas. É certo que as constituições de natureza liberal-social, como a brasileira, ou a social-democrática, como a portuguesa e a espanhola, dão uma extraordinária importância à implementação dos direitos sociais e à dignidade da pessoa humana, daí que interpretando essa linha de pensamento constitucional o constitucionalista português Jorge Miranda afirma que “de modo direto e evidente os direitos econômicos, sociais e culturais comuns tem a sua fonte ética localizada na dignidade da pessoa, de todas as pessoas”. Sob esse enfoque, a erradicação da pobreza e a redução das desigualdades sociais e regionais – que na Constituição brasileira aparece no art. 3º, III, como um dos objetivos fundamentais da República – vem sendo uma das maiores prioridades na construção de sociedades mais justas. Nesse panorama, estamos celebrando os 35 anos de uma Constituição democrática que nos trouxe muitas promessas sociais e, com elas, algumas frustrações, pelo que vale ressaltar, aqui, a advertência feita pelo cientista político Robert Dahal no sentido de que a democracia, para que exista plenamente, tem que ir “de mãos dadas com vários companheiros de viagem, entre os quais estão a cultura política, o desenvolvimento econômico e a modernização social”.

          Sublinhe-se que no Brasil, em que pese as garantias legislativas e judiciais para tornar efetivo os direitos sociais, a estrutura cultural e política do Estado oferece um obstáculo suplementar a esse propósito. Mas tais obstáculos, contudo, não aparecem explícitos na doutrina jurídica nacional – que sequer os mencionam – bem como na doutrina internacional que geralmente elegem obstáculos de outra ordem para a efetivação desses direitos. No entanto, tais entraves, entre nós, são compostos por elementos culturais e políticos historicamente arraigados, e por isso detentores de um poder avassalador sobre o sistema de garantias de natureza prestacional a ponto de sufocá-lo e de oferecer um risco permanente à efetividade constitucional nessa área. Podemos, assim, destacar as seguintes barreiras na democracia brasileira: 1) a burocratização excessiva; 2) a corrupção; 3) as políticas públicas deficientes ou mal executadas; 4) os direitos sociais tomados como “assistencialismo social” em detrimento de seu caráter universal.

          Acrescente-se que como elemento perturbador na consecução de políticas públicas, a burocratização e a corrupção são como irmãs siamesas neste processo cultural e político. E assim, tanto uma como outra, atuando em sua peculiar maneira de ser nas estruturas estatais, bloqueiam ou dificultam até à sua inefetividade as políticas públicas destinadas a cumprir os mandamentos constitucionais ou infraconstitucionais, em especial no campo social. Como se sabe, não há déficit legislativo no Brasil pois aqui temos lei para tudo, especialmente nesse campo, mas padecemos do mal da inefetividade de boas práticas governamentais.

          Democracia, desenvolvimento e direitos humanos – ainda que não seja possível encontrar plenamente atendidos nos Estados contemporâneos, passaram a ser indispensáveis para legitimar esses mesmos Estados. O princípio da dignidade da pessoa humana ganha destaque, nesse cenário, como valor supremo, e passa a ser a fonte por excelência dos direitos fundamentais. Mas o grande desafio para o constitucionalismo social no Brasil continua sendo o de reduzir a distância estrutural entre normatividade e efetividade.  E se é verdade que a Constituição democrática é a “união do povo com o Estado” deixemos que esse casamento seja duradouro, ainda que em meio às suas relações conflituosas, evitando, assim, tantas infidelidades constitucionais por parte dos poderes da República.

          RIQUEZA VERSUS BEM-ESTAR SOCIAL NO BRASIL

          O Brasil, que ostenta uma economia pujante e moderna, permanece atrasado socialmente, com o IDH[1]  na 87ª posição entre 191 países (dados de 2021).[2] Enquanto isso, ostenta um PIB de US$ 1,8 trilhão e está entre as 12 maiores economias do mundo em 2022.[3]

          Esse descompasso entre crescimento econômico e desenvolvimento muito tem a ver com a cultura política do país e muito pouco ou quase nada com a idealização de sua Constituição. Há, de fato, uma enorme dificuldade para fazer chegar os direitos sociais ao conjunto da sociedade e este é um tema constitucional de extrema importância, pois está vinculado à efetivação dessas normas fundamentais, sobretudo em um país como o Brasil que guarda diferenças regionais e de desenvolvimento bastante acentuadas.

          Sob esse enfoque, a erradicação da pobreza e a redução das desigualdades sociais e regionais – que na Constituição brasileira aparece no art. 3º, III, como um dos objetivos fundamentais da República – vem se constituindo, até hoje, no principal desafio de sucessivos governos…

          Vemos, assim, que a Constituição brasileira trouxe muitas promessas sociais incumpridas e, com elas, muitas frustrações. Mas não se pode culpar a Constituição por esses desacertos embora, ela própria, seja produto de uma cultura do faz-de-conta, muito entranhada na gestão pública brasileira e nas suas esferas de poder.[4]

           DIREITOS SOCIAIS: UM BREVE PANORAMA

          Relembre-se, por ora, na esteira de diversos autores, que o ressurgimento dos direitos sociais começou com o desenvolvimento da educação primária pública, mas não foi senão no século 20 que eles atingiram um plano de igualdade com os outros elementos da cidadania. MARSHALL foi um dos primeiros teóricos a desenvolver  a ideia de que ao lado dos direitos civis e políticos seria imprescindível o desfrute dos direitos sociais, base da cidadania. Conceituou o elemento social como sendo referente a tudo o que vai – desde o direito a um mínimo  de bem estar econômico e segurança, ao direito de participar, por completo, na herança social e levar a vida de um ser civilizado de acordo com os padrões que prevalecem na sociedade. Antes dele, ROUSSEAU assinalou a importância daquilo que chamou de “liberdade moral” , isto é, a igualdade básica de posição e prestígio moral e civil seguida de uma igualdade básica em provisões materiais, o suficiente para garantir um meio de vida. KANT, seguindo as pegadas do filósofo de Genebra, estatuiu que a igualdade garantida pelo estado e pelo direito, tanto quanto a liberdade, é a igualdade de oportunidade, pela qual todos teriam direito ao básico. Na Alemanha, a partir da Revolução Francesa, passou-se a exigir que o governo fizesse valer não apenas a justiça “formal”, mas também a justiça “substantiva” ou, em outras palavras, justiça “distributiva” ou “social”. Para HAYEK, essas idéias, no final do século 19, já tinham afetado profundamente a doutrina do Direito. Com efeito, ALEXY, muito tempo depois, expõe um argumento primordial em favor dos direitos fundamentais sociais: a liberdade, cujo ponto de partida desdobra-se em duas teses: a liberdade jurídica e a liberdade fática. Para ele, carece de todo valor a liberdade jurídica para fazer ou omitir algo sem a liberdade fática (real) de eleger entre o permitido. O que, para tanto, necessita de atividades estatais eficazes.

          AS DECLARAÇÕES INTERNACIONAIS

          Após a Carta da ONU, de 1948, com seu conhecido conteúdo declaratório e em escala mundial como resposta aos horrores do nazismo e do stalinismo, pensou-se num único pacto internacional, com natureza obrigacional para os estados signatários, destinado a integrar direitos civis, políticos, sociais, econômicos e culturais. Houve divergências entre os antigos blocos mundiais soviéticos e ocidentais, liderados pela então União Soviética e EUA. O primeiro bloco defendia um só pacto internacional; o segundo pretendia a celebração de pactos distintos com o argumento de que os direitos civis e políticos seriam de aplicação imediata, enquanto os demais seriam realizáveis progressivamente. Sem acordo, prevaleceu esta última posição, surgindo depois, em 1966, sistemas internacionais de proteção com características próprias, especialmente quanto à adoção de mecanismos de verificação e controlo, como se as duas famílias de direitos fundamentais não pudessem ser simultaneamente asseguradas.

          Porém, dois anos após a adoção dos Pactos Internacionais, a Conferência Mundial, realizada em Teerã, em 1968, firmou o caráter indivisível e a interdependência dos direitos humanos, ao estatuir que “Como os direitos humanos e as liberdades fundamentais são indivisíveis, a realização dos direitos civis e políticos sem o gozo dos direitos econômicos, sociais e culturais torna-se impossível.”

          Em 1993, em Viena, a Conferência Mundial sobre Direitos Humanos reiterou essa ideia, consolidada no item quinto, parte primeira, da sua Declaração e Programa de Ação: “Todos os direitos humanos são universais, indivisíveis, interdependentes e inter-relacionados.”  Afirma, por outro lado, o artigo 5 que: “As particularidades nacionais e regionais devem ser levadas em consideração, assim com os diversos contextos históricos, culturais e religiosos, mas é dever dos Estados promover e proteger todos os direitos humanos e liberdades fundamentais, independentemente de seus sistemas políticos, econômicos e culturais.”

          Nesse passo, observa-se que a dicotomia verificada na comparação dos respectivos artigos 2º dos dois pactos – normas autoexecutáveis e de implantação progressiva – não deve ser entendida como de tipo dualista (mutuamente excludente), mas pluralista, que procura classificar e combinar realidades complexas e distintas, conforme assinala WEIS. Esse reconhecimento, em certa medida, também é feito por PIOVESAN, para quem os direitos sociais estão condicionados à atuação do Estado, como é evidente, que deve adotar medidas econômicas e técnicas, isoladamente e através da assistência e cooperação internacionais, até ao máximo de seus recursos disponíveis, com vistas a alcançar progressivamente a completa realização dos direitos previstos pelo Pacto (art.2º, § 1º).

          No entanto, apesar dos tratados internacionais e das construções jurídicas que se sobrepuseram por todo este período, propiciar desenvolvimento – com liberdade e justiça social, como defendia KEYNES, contrapondo-se, portanto, ao auto ajustamento prometido pela “mão invisível” do mercado –, continua a ser o grande desafio das democracias. William Beverage lembrou certa vez a Churchill, em um de seus relatórios: “Liberdade também quer dizer ser livre da miséria”.  Aliás, SINGER   afiança não ser nenhum exagero dizer que o Plano Beverage inspirou a construção do moderno estado de bem-estar em numerosos países o que teria permitido, de fato, tornar os direitos sociais como parte dos direitos humanos.  Para o ex-secretário geral da ONU, o lendário Kofi A. ANNAN, deve-se dar mais atenção aos direitos econômicos, sociais e culturais e exemplificava com o fato de que analfabetismo em massa e pobreza são questões de direitos humanos tão importantes quanto a liberdade de expressão, e não considerar os primeiros itens é tão grave quanto negar o último.   TRINDADE reconhece que a vontade do poder público de promover e assegurar a proteção dos mais fracos só se manifesta com vigor no seio de sociedades nacionais imbuídas de um forte sentimento de solidariedade humana. Com justa preocupação vislumbra no atual quadro de deterioração das condições de vida da população, a afligir hoje tantos países, uma ameaça, inclusive, para as conquistas recentes no campo dos direitos civis e políticos.  Mais recentemente, SEN abraça a tese de que o desenvolvimento exige a remoção das principais fontes de privação de liberdade, tais como a pobreza, carência de oportunidades econômicas e destituição social sistemática, negligência dos serviços públicos e intolerância ou interferência excessiva de Estados opressivos.   Com razão, BOBBIO, em áspera crítica feita aos reacionários de todos os quadrantes, diz que a principal oposição aos direitos sociais não é a de apontar a sua falta de fundamento, mas a de invocar a sua inexequibilidade.

          À GUISA DE CONCLUSÃO

          Como vimos, constata-se, prima facie, um forte descompasso entre (1) uma constituição reconhecidamente dirigente, como o é a brasileira, detentora de um elenco expressivo de direitos sociais –, forjada que foi, naturalmente, sob a perspectiva da criação de um Estado medianamente intervencionista, em bem elaborada síntese “social-liberal” [5] –, e (2) a sua incômoda realidade. Convém, por isso, ressaltar que dentro do cenário intervencionista de um estado providência, como exige, exemplificativamente, a Constituição brasileira, o papel do Poder Judiciário deveria ir muito além da composição de conflitos interindividuais para situar-se num campo igualmente intervencionista, sensível aos problemas sociais e, portanto, compromissado com a justiça social.

          O que se tem como certo é que Estados democráticos e de direito não poderão subsistir como tal sem promover iguais oportunidades no acesso aos bens primários da coletividade, inclusive por meio de medidas judiciais assecuratórias. Por isso, há que se garantir um padrão elementar de dignidade aos postulantes, mesmo que ausente norma infraconstitucional ou condições econômicas favoráveis, casos em que se não está a ferir a cláusula parâmetro de separação de poderes, mas possivelmente exercendo uma interpretação consentânea com os ditames de justiça social, dentro de uma orientação voltada para a hermenêutica do “objetivismo atualista” e do valor normativo dos princípios.  Assim, a prestação concreta de serviços públicos essenciais, ainda quando precários e insuficientes, deveria ser compelida ou corrigida por parte dos tribunais, em face da necessária conjugação de democracia, desenvolvimento e direitos humanos. Em todo caso, a nosso sentir, a questão passa pela adequada interpretação das normas programáticas (inserindo-as no contexto da realidade social), e pela efetiva garantia judicial no tocante às chamadas prestações positivas do Estado.

 SERGIO VICTOR TAMER é advogado e professor, doutor em Direito Constitucional pela Universidade de Salamanca; presidente do Centro de Estudos Constitucionais e de Gestão Pública – CECGP e da Academia Maranhense de Cultura Jurídica, Social e Política

[1] O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) é uma medida geral e sintética usada para classificar o grau de desenvolvimento econômico e a qualidade de vida dos países. Foi criado em 1990 e vem sendo publicado anualmente desde 1993 pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD da ONU. O IDH varia em uma escala que vai de 0 a 1. Quanto mais próximo de 1, maior o desenvolvimento humano. A escala classifica os países em cinco faixas: IDH muito alto, alto, médio, baixo e muito baixo. As dimensões que constituem o IDH são: Renda: Padrão de vida medido pela Renda Nacional Bruta per capita; Saúde/Longevidade: Vida saudável e longa medida pela expectativa de vida e Educação: Acesso ao conhecimento medido pela média de anos de educação de adultos e expectativa de anos de escolaridade para crianças na idade de iniciar a vida escolar.

[2] https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2022/09/08/brasil-ranking-onu-desenvolvimento-humano-queda. (acesso em 23.5.2023)

[3] https://www.cnnbrasil.com.br/economia/brasil-sobe-uma-posicao-e-volta-a-ser-12a-maior-economia-do-mundo-em-2022 (acesso em 23.5.2023).

[4] “Art.5º Todos son iguales frente a la ley, sin distinción de cualquier naturaleza, garantiéndose a los brasileños y a los extranjeros residentes en el País la inviolabilidad del derecho a la vida, a libertad, a igualdad, a seguranza y a propiedad, en los términos siguientes: (…) § 1º Las normas definidoras de los derechos y garantías fundamentales tienen aplicación inmediata.”

     [5]   A expressão foi utilizada por RAYMOND ARON para explicar que a síntese nasce da junção do liberalismo clássico com a crítica socialista, cuja pretensão é garantir direitos e liberdades.

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